Sua rede de informações fictícias foi fundamental para o sucesso na tomada da Normandia.
No dia 6 de junho de 1944, 160 mil tropas aliadas invadiram a costa da Normandia, na França, iniciando a libertação do continente Europeu da ocupação nazista, durante a Segunda Guerra Mundial. Conhecido como Dia D, a operação só teve sucesso graças ao trabalho singular de um agente-duplo de codinome Garbo. Seu nome real era Juan Pujol Garcia, um comum cidadão espanhol que foi denominado pelo MI5 como “o maior agente duplo da Segunda Guerra Mundial”.
Originalmente rejeitado pelo serviço de inteligência britânica, Garcia conseguiu se infiltrar nos mais altos níveis da inteligência nazista, tudo isso, enquanto trabalhava como um espião amador não autorizado.
A história do criador de galinhas que foi duplamente condecorado e fingiu sua morte é tão improvável e fascinante quanto a teia de mentiras que ele contou aos nazistas enquanto operava como uma unidade de desinformação de um homem só.
Quem foi Juan Pujol Garcia?
Antes de iniciar sua improvável e gloriosa carreira na espionagem, já não tinha muito que mostrar a si mesmo. Nascido em 1912 numa família rica de Barcelona, ele abandonou o colégio interno e desperdiçou seu privilégio de frequentar uma academia de avicultores. O espanhol parecia ter um fracasso crônico em tudo o que se dispunha a fazer. Aos 30 anos ele já havia abandonado as forças armadas, trabalhado como criador de galinhas e cumprido pena de prisão duas vezes.
“Ele tinha tantas chances de se tornar um agente de inteligência de classe mundial quanto você ou eu teríamos de ganhar uma medalha de ouro na corrida olímpica”, é o que diz Stephan Talty, autor do livro Agent Garbo: The Brilliant, Eccentric Secret Agent Who Tricked Hitler and Saved D-Day.
Garcia tinha 24 anos quando se casou, nesse mesmo período a Espanha mergulhava em uma terrível Guerra Civil. Ele acabou sendo preso por não se apresentar ao serviço republicano, mas conseguiu escapar na calada da noite durante uma fuga de presos liderada por um grupo de resistência. Se escondeu por um ano e jamais voltou a ver sua esposa. Com documentos de identidade falsos, voltou à prisão por expressar sua simpatia pela monarquia.
Sonhador inveterado e com ambições grandiosas, muitas vezes equivocadas, ficou desiludido pelo período que seu país passava. Quando Hitler começou a travar seu reino de terror pela Europa, em 1939, ele estava determinado a agir de acordo com o que chamava de “contribuição para o bem da humanidade”. Numa autobiografia co-escrita por Nigel West, um especialista em espionagem, Garcia declarou: “Minhas convicções humanistas não me permitiriam fechar os olhos ao enorme sofrimento que estava sendo desencadeado por esse psicopata”.
Cego pela autoconfiança e indiferente ao seu próprio trágico registro de fracassos, deixou seu trabalho como gerente de um hotel em Madri e decidiu trabalhar como espião dos Aliados. Porém, ele foi recusado ao menos quatro vezes pela embaixada da inteligência britânica. Apesar da rejeição, resolveu se tornar espião por conta própria.
Um espião amador no Exército alemão
Ele, então, decidiu oferecer seus serviços de espionagem para os alemães, sabendo que se fosse capaz de estabelecer uma relação de confiança com os nazistas, poderia, eventualmente, se transformar em um agente-duplo. Esse plano funcionou melhor do que ele jamais pudesse imaginar.
Para se tornar um espião, ele precisaria de um passaporte e um visto de saída; dois itens praticamente impossíveis de se conseguir em um país devastado pela Guerra. Mas ele não se deu por vencido, e encontrou a oportunidade perfeita quando um duque espanhol entrou no hotel. Ele buscava incessantemente uísque e Garcia poderia oferecer a bebida ao Duque em troca do passaporte.
Com o documento em mãos, combinou um encontro com Gustav Leisner, chefe da Abwehr – uma organização de inteligência militar alemã, o encontro aconteceu em 1940. Garcia proferiu seu amor devoto (embora falso) pelo Terceiro Reich de Hitler, e girou em torno de Leisner sua teia de mentiras nas quais listava nomes de diplomatas inexistentes aos quais dizia ser afiliado. Ele foi contratado e recebeu um curso intensivo de espionagem e criptografia. Nesse mesmo ano se casou com Araceli González, uma jovem que conheceu meses antes.
Ele tinha ordens para se mudar para Londres e estabelecer uma rede de agentes, mas ele fez exatamente ao contrário. Em vez disso, se mudou para Lisboa e iniciou sua carreira imaginária de espião, entregando relatórios simulados a seu agente da Abwehr em Madri. Seus dados eram embasados com mapas, guias e horários de trens que eram retirados da biblioteca local.
Sua esposa colhia informações em noticiários e manchetes, e Garcia as utilizava para escrever seus longos e fictícios relatórios sobre campos de aviação dos aliados, locais da artilharia britânica e toda uma armada estabelecida em Malta. Essa última desinformação foi seguida pelos alemães e sua falta de veracidade foi descoberta. Apesar do deslize, ele ainda gozava de prestígio com os alemães.
Em 1942, Karl-Erich Kühlenthal, um major do Abwehr escreveu para Garcia: “Sua atividade e suas informações nos deram uma ideia perfeita do que está acontecendo ali; esses relatórios, como você pode imaginar, têm um valor incalculável e, por esse motivo, imploro que proceda com o máximo cuidado para não colocar em risco esses momentos importantes, seja você ou sua organização”.
Juan Garcia era tão amado e valioso para os nazistas que recebeu o codinome Alaric — que significa governante de todo mundo em alemão — e sua rede fantasma de 27 agentes, foi apelidado de Arabel — que significa orações respondidas, em latim.
Operação Fortitude e o Dia D
Os britânicos logo perceberam que alguém estava desinformando os alemães, e perceberam o valor disso depois que a Kriegsmarine desperdiçou recursos tentando caçar um comboio inexistente, relatado por Pujol. Então, ele foi transferido para a Grã-Bretanha em 24 de abril de 1942. Sua maestria em enganos e disfarces lhe rendeu o codinome de Garbo, em homenagem a Greta Garbo, a lendária atriz hollywoodiana.
Garbo concedia aos alemães pequenas informações factuais sem nenhuma relevância, em outros casos ele mesclava as informações com fatos e inventados. Em 1944, os Aliados dedicaram todas suas atenções para o planejamento da invasão da França no Dia D. A manutenção do segredo da operação era de suma importância.
Em um esforço conjunto foram lançadas campanhas maciças de desinformação, em exercício que ficou conhecido como Operação Fortitude. Informações falsas passaram a ser disseminadas em manchetes de jornais e transmissões de rádios. Hitler sabia que um ataque era iminente e preparava sua resposta defensiva por meses, mas um detalhe crucial o escapou: o momento exato e a localização da ofensiva aliada.
Foi aí que Garcia entrou em ação, ele foi encarregado de convencer Hitler que o ataque aconteceria a mais de 300 quilômetros de Normandia, em Pas-de-Calais, região francesa mais próxima da Grã-Bretanha. Ele convenceu os nazistas de que o general Patton estava formando um exército de milhões de homens, para corroborar com a mentira, jornais publicaram falsas cartas de moradores locais que reclamaram do barulho e desordem dos soldados.
Em 5 de junho, Garbo deu instruções aos nazistas para aguardarem uma mensagem muito importante às 3 da manhã. A fim de preservar sua confiabilidade com o inimigo, ele iria revelar a localização real (Normandia), mas propositalmente tarde demais para impedir a invasão que já estava a caminho.
Mas, por sorte, os nazistas perderam a ligação – as operadoras de rádio de Madri estavam fora do ar das 23h30 às 7h. Garbo repreendeu seu oficial de justiça alemão por ter perdido o despacho crucial, dizendo: “Não posso aceitar desculpas ou negligência. Se não fosse pelos meus ideais, eu abandonaria o trabalho”.
A Operação Fortitude funcionou tão bem que, dois dias depois, os nazistas ainda não jogaram todo o seu poder militar nas praias da Normandia. Em 9 de junho, Garbo enviou um despacho de acompanhamento aos alemães: “Sou da opinião de que, devido às fortes concentrações de tropas no sudeste e no leste da Inglaterra, que não participam das operações atuais, essas operações são uma manobra de desvio destinada a retirar reservas inimigas, a fim de fazer um ataque decisivo em outro lugar… pode muito provavelmente ocorrer na área de Pas-de-Calais.”
Condecorações e sua vida pós-Guerra
Isso permitiu que os Aliados garantissem uma posição forte na França. Por seu trabalho, Garbo se tornou a única pessoa a receber a Cruz de Ferro da Alemanha e se tornar membro da Ordem do Império Britânico, a maior honra do país.
Após a guerra, Garbo se mudou com sua esposa, Araceli e três filhos para a Venezuela, onde ele finalmente fingiu sua própria morte com a ajuda de Tomas Harris, seu agente do MI5 e começou uma nova família. Ele faleceu em 1988, aos 76 anos, na cidade de Caracas.
Por FABIO PREVIDELLI